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25.01.2018

Postado por Mariana Moretti

Memórias de uma tricolor

No dia do aniversário do São Paulo Futebol Clube, compartilho nas linhas abaixo um sentimento único e muito honesto que chamarei carinhosamente de “O que o Morumbi lotado me ensinou”. Poucas vezes tive a sensação de pertencimento a algum lugar ou mesmo tive a certeza de que alguma coisa duraria a vida toda. Tudo perece, termina, esvazia. Mas o que o São Paulo significa para mim eu tenho convicção de que será eterno. Dentre muitos questionamentos, o Tricolor me ajudou – e muito – a esboçar com mais firmeza a trajetória que gostaria para a minha existência. Parece exagero? Explico-me.

A primeira vez que eu fui ao estádio do Morumbi, fui escondida dos meus pais, que naquela época não deixavam que eu frequentasse jogos de futebol. Não os culpo, ainda hoje pode ser uma experiência insalubre, principalmente para nós, mulheres. Não porque não sabemos nos defender, mas porque tem muita gente do meio do futebol e que frequenta estádios que ainda precisa de boas aulas de respeito e, porque não dizer, de humanidade. Pois bem, fui ao Morumbi pela primeira vez escondida: meus pais acharam que ia ao cinema, quando na verdade eu escondi a camisa tricolor embaixo do agasalho, caminhei alguns quarteirões do shopping até o estádio e lá estava eu com um amigo, plena, prestigiando a estreia do Imperador no Morumbi, em 2008.

Desses tempos pra cá, o futebol passou a fazer parte da minha vida de forma que é difícil explicar para quem não entende essa paixão. E o que é que isso tem a ver com as minhas ideias e com o prazer de escrever sobre o esporte? O futebol me trouxe indagações, percepções e, sobretudo, reflexões que a maior parte dos livros que já li, aulas que assisti e reuniões acadêmicas que participei não me fizeram ver com tanta clareza. O episódio de ir clandestina até o estádio para ver o jogo me fez vivenciar o que já não era novidade para mim desde pequena: meninos e meninas eram criados de formas diferentes. Essa foi a certeza de experimentar a injustiça que o meu gênero estava condenado por toda a vida, caso a luta não existisse. Então pensei, por que é que não posso ir quando quiser a um estádio de futebol?

Depois desse dia, comecei a ir com mais frequência nos jogos. Fui ao Morumbi, fui ao Pacaembu, fui ao Itaquerão, fui a Curuzu de Belém do Pará. Em certa ocasião no Morumbi, lotado em dia de clássico, experimentei a sensação de ir com um amigo e ele pegar na minha mão para caminharmos até a arquibancada – só assim eu estaria “segura” das chacotas dos outros homens, que respeitariam o suposto casal. A roupa de ir ao estádio também era escolhida com cautela: deveria ser a mais discreta possível, ou se não fosse, estaria eu pedindo para ser “notada” e “elogiada”. Azar o seu que quer ir no estádio só pra ver seu time jogar bola. Então pensei, por que é que não posso usar a roupa que eu quiser e caminhar sozinha por onde eu quiser?

E não pára por aí. Com o mesmo amigo, decidimos pular a grade de uma arquibancada para a outra, porque na outra, da mesma torcida, que não havíamos comprado, dava pra sentir mais emoção. Pedimos para acontecer o que aconteceu? Não vejo dessa forma, sempre tive meu pé atrás com a disciplina que nos é imposta. Meu amigo foi antes, era bem mais ágil que eu, magricela e meio lesada. Nesse momento, uns três policiais que cuidavam pela moral e bons costumes da arquibancada tricolor desceram como uma bala do ponto que estavam e empunharam seus cassetetes. Como em câmera lenta, eu me afastei do pequeno caminho percorrido e meu amigo completava a façanha, ficando apenas sua perna para trás e sua amiga perplexa, enquanto o herói dos bons costumes tentava acertá-lo umas belas de umas pancadas, mesmo já tendo ele completado o pulo.

Uma das partes mais emocionantes de um jogo é com certeza a saudação da torcida aos jogadores, no início da partida. Cada jogador tem seu grito, sua música, e um deles eu fazia questão de não acompanhar. Um dos jogadores, homossexual assumido, era vítima de uma música que dizia “boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de boceta”. Então você pensa, por que é que as pessoas não tem o direito de escolherem a opção sexual que bem entenderem, e sobretudo, o que os outros tem a ver com isso?

Para finalizar, meu trabalho de conclusão do curso da Pedagogia foi sobre a ditadura militar e a educação, usando as charges de Henfil para evidenciar esses fatores. Durante a pesquisa, reservei um ou dois dias (ok, foram mais que isso!) para ler sobre a apropriação do futebol pela ditadura, sobretudo a Seleção Brasileira. A imagem que Médici passava com seu radinho de pilha nas arquibancadas era um engodo, uma falácia populista para ter a aceitação da população de um regime antidemocrático. Médici era gremista e aparecia frequentemente na torcida do Flamengo. Nunca confie em quem torce para dois times no futebol. Algo semelhante atualmente é o candidato fascista que recentemente tem aparecido com a camisa rubro negra e assistido jogos nos estádios. A história se repete. O futebol é espelho da sociedade e anda de mãos dadas com a política. Só quem não quer não vê.

Em suma, foram essas e outras coisas que me fazem pensar como eu penso, acreditar no que acredito. Eu, Mariana, carrego em minha essência o que é ser humana e celebrar minha humanidade com as escolhas que fiz nesse breve percurso da existência. Como brasileira, meu orgulho é de carregar a diversidade no sangue e ter o respeito no coração. Entendo que isso que passei e descrevi não chega perto de provações muito maiores que muitas pessoas já passaram na vida com a minha idade e chegaram a essas conclusões sobre a sociedade que vivemos. Contudo, penso que de alguma forma as conclusões que tirei com esses episódios fazem parte de uma trama muito maior, envolvendo pessoas de histórias muito diferentes, uma trama de batalhas que travamos a cada dia, cada um de uma maneira diferente.

Escrevo sobre futebol porque é uma escrita honesta e sincera, que dialoga com quem sou hoje. O futebol é o espelho da sociedade e assim será por muito tempo. Está nos pés da molecada, nos muros da Copa do Mundo, no chocolate Leônidas da Silva, digo, Diamante Negro que consumimos contentes. Despeço-me enfatizando que essas são algumas das experiências que vivi com o futebol. Quando visto a camisa do meu time, não estou apenas carregando o emblema do clube, mas estou vestindo todas as experiências que vivi e que me fizeram ser o que eu sou hoje.

Muitos anos de vida ao meu Tricolor, que sua inspiração ultrapasse sempre os limites do Morumbi!

 

 

Foto de Getty Images

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