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03.05.2018

Postado por Colaboradoras

E se todo jogo virasse manifestação política?

Há alguns meses, usei dessa coluna para listar alguns casos em que política e esporte se entrelaçaram e viraram um corpo só. Um dos exemplos que citei foi a Democracia Corinthiana, um dos mais belos movimentos ideológicos já ocorridos no futebol. O movimento liderado pelo lendário Doutor Sócrates já rendeu livros, documentários, teses de mestrados, resenhas e afins. E não é à toa. A Democracia Corinthiana surgiu dentro do clube, entre jogadores, dirigentes e funcionários e tomou proporções nacionais, influenciando de forma direta ou indireta as “Diretas Já”, movimento que reivindicava a retomada da democracia no Brasil.

Com todo esse histórico, nessa quarta-feira, o Corinthians lançou suas novas camisas que revisitam a trajetória do clube, uma delas com uma homenagem à camisa da Democracia Corinthiana, imortalizada pelo time de 82, além de uma estátua – mais que merecida – ao jogador Sócrates Brasileiro, que faleceu em 2011.

Reprodução

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O diretor de marketing do Corinthians, Luís Paulo Rosenberg, explicou a inspiração: “A Democracia Corinthiana foi um período em que os atletas mostraram, dentro e fora de campo, o verdadeiro DNA do clube: uma nação que prega, acima de tudo, paixão, união e coletividade. A nova camisa branca é uma homenagem a esse espírito único do Corinthians e à essência de grupo presente em todos os setores do clube”. Convenhamos que uma camisa que custa R$ 199,90 não é lá a coisa mais democrática do mundo, mas é uma releitura mais que justificada.

Pois bem, a tal camisa teria sua estreia nesta quarta, contra o time argentino do Independiente, pela Copa Libertadores da América, porém, a Conmebol vetou o uso da camisa pelo time pois identificou que o slogan “democracia corinthiana” estampado possuía cunho de manifestação política, o que seria proibido pela instituição que regulariza as regras do campeonato.

Como bem disse a Tatiane Araújo, uma das setoristas aqui da Bola, imagina quando a Conmebol descobrir que o nome do torneio Libertadores da América é uma homenagem a San Martín, Simón Bolívar e outros bravos compatriotas que lutaram para libertar o continente do domínio espanhol e que o nome do campeonato, por si só, é de cunho político?

José Dimitrakis

José Dimitrakis

Mas contradições de instituições pouco confiáveis à parte, voltemos à Fiel e as organizadas. A Gaviões é uma das torcidas mais atuantes politicamente no Brasil. Em 2016, manifestou-se contra o escândalo nos desvios das merendas escolares no governo de São Paulo estampado a faixa “quem punirá o ladrão das merendas” durante o jogo Corinthians x Linense, pelo Campeonato Paulista. Também já chamou a Rede Globo de golpista e apoiou os professores massacrados pela prefeitura de São Paulo em março desse ano. Além da torcida corinthiana, durante o processo do golpe de 2016, Temer virou alvo das organizadas do Ceará, do Fortaleza e do Internacional, entre outras ações pelo país nos campeonatos regionais e no nacional das séries A e B.

protesto-ap Foto Leo Correa

Leo Correa

Poucas organizações são tão poderosas como uma Torcida Organizada. Elas possuem um caráter genuíno de unir multidões em um mesmo local, com o mesmo interesse, com a mesma catarse semanalmente, por tempo indefinido, tempo esse que pode perpetuar por décadas e séculos. O futebol é o esporte mais popular do mundo e boa parte dos clubes e suas torcidas ao redor do globo possuem origens operárias.

Vendo por esse ângulo, o do cunho de manifestação popular, seria natural que esse grupo de pessoas que se organizam e se encontram uma vez por semana comecem a se organizar em prol de outras ações que afetem seu cotidiano comum, seja para reivindicar por melhores transportes e salários, até contra ações de repressão política e social. E imagina tudo isso sendo televisionado, ganhando proporções ainda maiores.

democracia contra o golpe_ fonte mídia ninja

Se pensarmos por essa premissa, que torcidas organizadas poderiam utilizar seu caráter agregador e organizacional, entenderíamos o porquê se expulsa cada vez mais o torcedor popular dos estádios, elitizando a torcida com ingressos de valores abusivos e principalmente marginalizando as organizadas. Esse movimento de criminalização das torcidas não é privilégio brasileiro.

Nos anos 80, o Campeonato Inglês (atual Premier League) foi pouco a pouco minando seus torcedores. Utilizando da tragédia de Hillsborough – em que 96 torcedores do Liverpool morreram pisoteados e mais de 700 ficaram feridos – uma cruzada contra as “organizadas” foi instaurada, times viraram empresas e o resultado é que hoje, boa parte dos torcedores locais assistem jogos em pubs ou por TV por assinatura, uma vez que a maioria dos ingressos são vendidos dentro de pacotes turísticos, por valores nababescos, tendo como foco o mercado asiático. Com o perdão do trocadilho, mas a premiére virou “coisa para chinês ver.”

Tirar qualquer caráter de víeis político do futebol e afastar as camadas mais populares do espetáculo é uma realidade em tempos de futebol globalizado e capitalizado, mas a única pergunta que me intrigou nessa história toda da Conmebol foi: – se vivemos em um país democrático, se não houve golpe, se não há uma perseguição política instaurada a movimentos populares, porque a palavra democracia foi vista como manifestação política aos olhos da Conmebol?

 

Por Josie Rodrigues

A Bola que Pariu