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17.05.2018

Postado por Colaboradoras

Entre o saudosismo e o trauma: memórias das Copas

Eu era apenas uma criança nos longínquos anos de 1990, não lembro muito bem da Copa, sabia que o Brasil jogava e a cada jogo do Brasil uma casa do bairro onde morava sedia a peça da churrasqueira ou sala de estar para que a vizinhança assistisse aos jogos. Desde então, esse hábito de misturar amigos, comida, bebida e jogos da seleção me segue como se fosse uma bizarra tradição.

Não sabia o que era impedimento, escalação, regras e mal acompanhava futebol, mas sabia que o Brasil jogava, que meu pai e das minhas amigas estavam em casa, e que a cada jogo era dia de festa. Na volta de uma dessas festas, papai – com uma cara colérica –  bateu a porta de casa assim que chegamos. Eu perguntei quando seria a próxima festinha, ele secamente respondeu: – A Copa acabou! Só depois de uns anos fui entender que havia acabado apenas para “nós” que perdemos para a Argentina de 1 x 0 nas oitavas de final. Também mais tarde saberia que essa seleção era aquele doce inimigo que chamamos de arquirrival.

Já em 1994 tudo foi diferente, tinha à época 11 anos e essa seria a minha primeira Copa. Foi em 94 que comecei mais um hábito maldito que perdura até hoje: colecionar álbuns da Copa. Também já era familiarizada dos jargões futebolísticos e jogava futebol de salão, naquele que foi um dos primeiros times femininos da cidade. Era palpiteira e a meu ver estava decretado que perderíamos. Natália, minha melhor amiga – que sempre sofreu de um otimismo assombroso – apostou comigo uma caixa de bombom que o Brasil seria campeão. Como todos sabem, perdi a aposta. O Tetra veio com a seleção de Romário, Bebeto, Branco, Dunga e claro, do Taffarel.

The Playoff

The Playoff

Na Copa de 1998, era uma adolescente cada vez mais fanática pelos assuntos ludopédicos. Assisti ao Brasil ir para a final após um jogo emocionante na semifinal contra a Holanda. Para garantir o penta precisaríamos ganhar da França em seu território. O Penta não foi conquistado, mas o amargo gosto da derrota foi sucumbido com o deslumbre de ver o brilho e a genialidade daquele que para mim é o maior – e mais belo – craque de toda uma geração: Zinédine Zidane.

O ano de 2002 era ano de faculdade, morava sozinha, longe da família na fria Serra Gaúcha. A Copa que ocorreu em dois países: Coréia do Sul e Japão foi marcada pelas frias noites de inverno, com temperaturas negativas em que a lenha da lareira, o quentão e o cheiro do orvalho no quintal se misturavam aos jogos na madrugada. Com um frio de gelar os ossos assisti o Brasil ser Penta com a famigerada família Felipão, que contava com os melhores jogadores da época: Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos e Rivaldo.

Getty Images

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Em 2006 já morava e trabalhava em São Paulo e essa foi uma das copas mais fuleiras no quesito futebol. Aquilo que mais marcou a copa não foi um gol, um drible ou uma jogada. Mas sim a minuciosa e devastadora cabeçada de Zidane no peito de Materazzi. Sublime! Outro acontecimento memorável ocorreu durante as transmissões do campeonato, quando um conhecido jornalista esportivo – ebriamente alterado – alertou que a África do Sul não era muito longe, era logo ali, e reverenciou a Itália de Totti, Zambrota e Cannavaro!

Getty Images

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Durante a copa de 2010 a colombiana Shakira fazia sucesso com o tema Waka-Waka e a seleção ficou marcada pelos disparates de Dunga, Felipe Melo e só.

Pode parecer estranho, mas acredito que de todas as Copas, a mais emblemática foi a de 2014. Talvez demoremos um tempo para entender o que ela significou, pois parece que faz mais de quatro anos que vivíamos os vestígios de um país que não existe mais. A Copa no Brasil possuía algo de lúdico, quase um prenúncio de uma grande despedida. Nunca uma copa foi tão zoada, a capacidade de rirmos de tudo e fazer uma grande chacota e caricatura de nós mesmos, impressionou até os estrangeiros que por aqui passavam. Ela acabou em campo para nós com um escandaloso 7 x 1 para a Alemanha no Mineirão.

EFE/Fernando Bizerra Júnior

EFE/Fernando Bizerra Júnior

Após o quarto gol, meus amigos e eu comemos e bebemos como vikings descontrolados. Afinal, havíamos preparado uma quantidade indecente de comida alemã, cerveja e chucrutes, mais de 10 amigos em casa, não dava para desperdiçar tudo isso por conta do David Luiz. A solução foi esquecer a seleção e a festa acabou às 4h da manhã com dois convidados fazendo cover do Ian Curtis na sala de estar.

Mas algo já estava no ar, algo que nos apontaria que não seríamos os mesmos, que ficaríamos cada vez mais divididos, mais polarizados, mais distantes. Houve uma ruptura no país que começou em 2013 e culminou com o fatídico 7 x 1. Nunca mais seremos campeões de 2014 e a síndrome de vira-lata está de volta, impregnada em nossa psique coletiva.

Gosto de metáforas futebolísticas para explicar o nosso tempo, porque essa derrota vexatória, em nossa própria casa, representa um pouco os caminhos que escolhemos como sociedade. A mesma camisa da seleção, por exemplo, foi utilizada como uniforme de uma multidão de manifestantes que com a baba bovina do ódio, alimentada por uma imprensa parcial, marcharam pelas ruas do país pedindo pela intervenção militar, por um golpe de governo, pela “culpa não é minha eu votei no Aécio” e pelo fim da corrupção usando o escudo da CBF como símbolo em uma grande contradição.

Veja

Veja

Depois dos 7 x 1 e do pato de borracha com a ala de manifestantes com o uniforme da CBF, é impossível olhar para aquela camisa e não vir a mente um paneleiro no lugar do torcedor. Além do mais, nos últimos três anos, eu abri ao menos três chamados no reclameaqui contra dois dos quatro patrocinadores da seleção, ou seja, a canarinho de hoje é pior que relacionamento abusivo, só me traz péssimas recordações.

Mídia Ninja

Mídia Ninja

Por essas e outras, mais difícil que completar o álbum da Panini esse ano é encontrar o mínimo entusiasmo para essa Copa, mas confesso que escrever aqui e lembrar as copas passadas me trouxeram uma pitada de melancolia e um pouquinho de saudosismo. Talvez seja o caso de esquecer, talvez seja o caso de usar um lenço maragato, encarnado, escarlate por cima da amarelinha como uma forma de protesto pelo o uso indevido feito com essa camisa.

 

Por Josie Rodrigues

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