23.09.2018
Postado por Colaboradoras
A primeira vez que fui a um estádio de futebol que não o Beira Rio foi ao Morumbi. Estava acompanhando meu ex-namorado – são paulino fervoroso – em um jogo pelo Brasileirão de 2008, ele havia ganho dois ingressos para ala VIP do Morumbi, um bar nababesco, coisa muito fina em que os seletos torcedores podiam ter acesso aos bastidores e acompanhar os jogadores entrando em campo. Poder sentir aquela multidão de dentro do campo com o mesmo olhar dos jogadores é inesquecível. Lembro que meu então namorado perguntou: – E aí? Se emocionou? Com meu melhor olhar blasé respondi: – Nhennn! Não é o Inter! Depois disso, tive a oportunidade de sentir algo semelhante com a Fiel (aquela massa apaixonante, de fato) e com o Santos enquanto fitava uma amiga com seus olhinhos infantis debaixo do bandeirão do glorioso alvinegro praiano. A sensação sempre foi a mesma: sei o quê, entendo, mas… não é minha, não é a minha paixão.
Ilustro isso para falar que entendo o sentimento da paixão. A Paixão não se explica. Ela é um apanhado de pequenas coisas com toque de “um sei quê de não sei quê” que age diretamente na nossa capacidade crítica e cognitiva. Uma cor, um escudo, um nome, um jeito de sorrir apertando o canto direito da boca, aquela forma única de segurar um copo, de falar. Um conjunto de fatores que faz com que algo seja único e sublime diante de nossos olhos. A paixão não se explica, se sente com cada pequeno pedaço do corpo. É aquilo que faz com que algo se torne incomparável diante dos nossos olhos.
No meu cotidiano sou cercada por pessoas que desdenham minha paixão, aquela em que estou predestinada a amar pelo resto da vida. Meus amores vão, o Colorado fica. Esse incrível paradoxo, essa metafísica que faz a ateia aqui, descrente, cética e apolínea, rezar, ter rituais e sandices, além de toda a falta de bom senso que só um fiel torcedor sabe o que é. Eu nunca tentei explicar essa lógica, nunca acreditei que todos deveriam senti-la, porque pensando racionalmente, idolatrar algo acima de todas as coisas é uma das maiores loucuras que nós – seres sapiens sapiens – podemos cometer.
Esse raciocínio lógico em que entendo meus amigos “racionais” que desdenham paixões populares cai por terra a cada ano de eleição. Uma eleição é a prova viva que o brasileiro pensa com o âmago, as entranhas e o esôfago. O brasileiro antes de tudo é um visceral. Boa parte daqueles que desdenham paixões, cultos populares, paradoxos, culto a imagem e religiões são imediatamente sucumbidos pelo amor ou ódio a um candidato ou a um partido. As eleições são a prova viva que o Brasil é um derby futebolístico que nunca acaba. Maniqueísta, tendencioso e crente que um mata-mata resolve todos os problemas centenários de uma gestão mal-acabada.
Nessa dicotomia sem fim, vivi para ver amigos brigarem por candidatos que defendem a mesma pauta (em termos ludopédicos: ambos estariam disputando a ponta da tabela, o G6 do Brasileirão). Vi o ódio por um partido tomar corpo e preferirem colocar o algoz em campo frente a remota possibilidade do desafeto ser campeão. Também vi uma torcida exaltando um candidato homofóbico, machista e racista em um grande clássico nacional. Mas vi também a maior torcida do Brasil voltando as suas origens democráticas e se manifestando politicamente contra o discurso de ódio que exalta a ditadura, tortura e tudo aquilo que em sã consciência ninguém deseja que volte.
Diante de todo esse paradoxo, em que os torcedores parecem ser mais sensatos que eleitores, fico aqui divagando e pensando como seria o país se víssemos a política como vemos o futebol. Será que acompanharíamos cada votação na câmera legislativa que afeta nossos direitos coletivos e individuais? Saberíamos que não adianta ter um ídolo se o plantel não é bom? Entenderíamos como funciona a escalação para distribuição de cadeiras para deputados e vereadores, os votos não majoritários? Acompanharíamos partida por partida ou só a Copa do Mundo? Como seria a paixão atrelada ao dia a dia? Ao jogo a jogo, ao acompanhamento de cada rodada que decide um campeonato e a estratégia para o ano seguinte? Teríamos análise crítica e contundente apesar das decisões equivocadas de nossas paixões?
Como diria minha melhor amiga – doutora em ciências políticas e uma das mulheres mais brilhantes que já tive a honra de conviver – política se faz todo dia. E o futebol – ironicamente- também. Torço que sejamos coerentes, participativos e que as paixões e o ódio irracional não nos matem. Esse é o maior desejo para o grande derby de outubro.
*derby = partida em que dois times grandes de mesma localização (estado ou cidade) disputam um jogo
* G6= classificação da tabela do campeonato brasileiro que dá vaga ao campeonato continental Libertadores que automaticamente os clubes aumentam o numero de patrocínio e direitos de imagem televisivos.
Por Josie Rodrigues