VOLTAR

Futebol Feminino,

08.03.2017

Postado por Raisa Rocha

Mulheres do Futebol: Juliana Cabral

O tom sério e criterioso são heranças de quem vestiu a braçadeira de capitã numa vitoriosa trajetória Olímpica. Com o conhecimento profundo da realidade e a experiência de quem luta diariamente pela evolução da modalidade, Juliana Cabral fala de seus anseios e receios com este novo momento que o futebol feminino e as mulheres vivem.

Reuters

Reuters

Pra começar, nos fale um pouco sobre uma afirmação sua recente a respeito do momento atual do futebol feminino brasileiro, a de que obrigação é diferente de incentivo.

Acredito que nada que é obrigatório é bacana, mas eu entendo que dentro do nosso país, que é muito machista, se não for na base da obrigação talvez seja difícil de as coisas acontecerem. O problema é que, sendo na base da obrigação, é preciso ter uma fiscalização, algo necessário já quando não se é obrigado. Neste caso, acredito eu que seja ainda mais porque as pessoas não gostam e não querem aquilo, então muitas vezes é feito de qualquer jeito. Tenho escutado, por exemplo, não tenho provas e não corri atrás, mas chegam informações de clubes oferecendo valor por jogo para as jogadoras. Quer dizer, vão disputar o Campeonato Brasileiro inteiro, mas recebendo R$ 50 ou R$100 por jogo e o resto seria tudo por conta delas mesmas. São coisas absurdas que já aconteciam e que vão acontecer. Pra ser obrigatório o produto precisa a ser muito mais interessante. Apesar de o campeonato ter mudado e ter um novo regulamento com duas divisões, algo que tanto se bateu na CBF, muitos times estão sendo formados agora, então o desnível técnico provavelmente aconteça.

Tu acha que essa cultura do resultado é um perigo iminente em relação a continuidade dos times?

Isso sempre existiu e vai ser uma ameaça sempre, infelizmente. Eu não sei por quanto tempo a obrigação vai perdurar, mas simplesmente não haverá todo um investimento num campeonato para ano que vem acabar. Teoricamente, com a obrigação para jogar Libertadores e os campeonatos da CBF, isso não deve acontecer. O que pode acontecer é de talvez acabarem clubes que já são do futebol feminino e têm dificuldades em se estruturar, com mudanças de prefeitura, por exemplo. Em relação ao clube grande não; ou ele investe ou ele tá fora das competições do futebol masculino e ninguém será louco. Tem também os que são filiados ao PROFUT, o que gera obrigação com o futebol feminino. Mas eu também me coloco no lugar do clube: ter dois campeonatos pra disputar no ano. Ou seja, entro no Paulista e saio na primeira fase, entro no Campeonato Brasileiro e saio na primeira fase e não tenho mais o que jogar, ainda mais depois da extinção da Copa do Brasil.

O que não havia a necessidade (a extinção da Copa do Brasil a partir de 2017).

Certamente não. Seria uma grande oportunidade para vários outros clubes, como acontece no masculino, clubes pequenos, sem história, que teriam algo para disputar. Mas no futebol feminino é assim, você precisa perder uma coisa para ganhar outra, sempre algo está em jogo, o que é uma pena. Alguns clubes que disputaram o Campeonato Brasileiro do ano passado, por exemplo, não têm calendário este ano. Ou porque ficaram fora dos ranqueamentos ou pela entrada dos clubes de camisa. E isto é o que me preocupa: quem não se classificar pra Libertadores faz o que? Eu acho que para obrigar você precisa ter um produto melhor, mais interessante, para que se interessem por aquilo. Logo que saiu o PROFUT, um dos presidentes já filiados ao programa fez esta pergunta: “vou ter futebol feminino para disputar o que?”. É claro que ele não tem o conhecimento de que acontecem campeonatos, mas acho que apenas dois é muito pouco para manter o time o ano inteiro. A Conmebol faz a exigência, mas até ontem a Libertadores Feminina era uma porcaria, para não falar uma a palavra suja e feia. É péssimo, pior que amador – campos esburacados, sem iluminação, time sem transporte para chegar ao local de jogo. Exijo algo do clube, mas minha obrigação eu não faço. É claro que isso tudo faz parte da FIFA e hoje existe uma recomendação para que se desenvolva. Enfim, vamos ver no que vai dar.

Paralelamente a isso há coisas positivas acontecendo, como a Aline Pellegrino no Departamento de Futebol Feminino anunciando medidas importantes; sendo a mais recente a confirmação de um campeonato para a base. Você vê o que ela está fazendo aqui em São Paulo como algo que pode ser uma “revolução”, que pode se tornar uma referência?

Referência sem dúvida nenhuma ela vai virar, acho que já é. Em tão pouco tempo já conseguiu fazer uma premiação pro Campeonato Paulista e um campeonato de base, que até então também não existia. Ou seja, não é porque não dá para fazer, é porque as pessoas não têm o interesse em fazer. A Aline chega num momento importante, em uma Federação muito conhecida e de muito poder político, certamente será uma referência, mas precisamos de mais Alines. E não é pelo fato de ter sido jogadora, mas se não tivermos pessoas envolvidas como ela, que gostam da modalidade e conseguem ver coisas a serem desenvolvidas, dificilmente ela será copiada. Não sei se o trabalho dela vai virar referência para outra Federação, pode até ser que eu esteja enganada, mas eu acho muito difícil. Torço muito para que ela chegue na CBF, precisamos de uma pessoa lá dentro que tenha o comando para realmente desenvolver o futebol feminino, o que hoje não temos.

Reprodução/ESPN

Reprodução/ESPN

Falando sobre isso, tu é sempre muito sincera e crítica, não deixa de citar nomes e de dizer o que precisa ser dito. Já rolou algum puxão de orelha eu você tem tido a liberdade para trabalhar e se manifestar?

Puxão de orelha sempre acontece. Na época das Olimpíadas houve algumas tentativas de calar a minha boca, mas não tenho rabo preso com ninguém e falo o que penso. É claro que eu entendo que as coisas não acontecem da noite pro dia, que existem processos e uma série de coisas, mas eu vejo muita má vontade, pessoas querendo se utilizar de cargos, falando que fazem o que na verdade não fazem e isso me incomoda um pouco porque já fui jogadora e passei por coisas que as meninas ainda passam e que são revoltantes às vezes. Graças a Deus hoje eu trabalho num local que me dá muita liberdade e espaço, vai ser difícil alguém impedir que eu exponha minha opinião sobre o que eu vivi praticamente toda a minha vida.

Já percebi que boa parte dos profissionais da comunicação tem bem pouco conhecimento dos fatos da modalidade, seu histórico. Você tem visto algum movimento de atualização dessas informações ou não?

Não existe interesse nenhum, essa é grande verdade. Pra grande mídia, a não ser quando a jogadora serve para ser capa de revista há um certo interesse, de resto não. Não se busca uma compreensão do histórico da modalidade e da proibição da mulher, das dificuldades do desenvolvimento em todas as áreas; não só na estruturação, mas da parte técnica, física, tática e psicológica, que ainda estão em evolução. Acredito eu que o produto como é feito, de qualquer jeito, não atrai, exceto as pessoas que realmente gostam. E isso a gente precisa mudar da noite pro dia, essa venda desse produto melhor, mais competitivo, mais técnico, mais plástico, com jogadoras que fisicamente realmente representam atletas. Há muita coisa para evoluir e infelizmente na grande mídia é o que estamos acostumados a ver: de 4 em 4 anos, em Olimpíadas, todos querem estar junto de quem consegue a medalha.

Resumindo, não há um planejamento da ESPN na cobertura desse Brasileiro?

Ano passado se tentou fazer a transmissão do Brasileiro e fizemos alguns jogos, mas outro canal tinha os direitos. Alguma coisa tem se pensado com relação a campeonatos internacionais, mas nada muito planejado ou sério ainda não.

Aonde que o futebol feminino evoluiu mais no modo de jogar do teu tempo de jogadora pra cá?

Fisicamente o jogo está um pouco mais corrido. Não em todos os times, mas percebo uma leitura tática melhor, tentativas de desenvolver o jogo a partir de estratégias e conceitos bem diferentes da minha época. Ainda com muito a evoluir comparado com outros países, um caminho longo a percorrer na parte de campo.

Reprodução/ESPNW

Reprodução/ESPNW

Emily Lima citou na sua apresentação que as jogadoras brasileiras são preguiçosas taticamente, o que sabemos ser uma lacuna na formação. Já se deu pra ver um pouco de evolução neste aspecto no Torneio de Manaus, você acha que ela vai conseguir incutir essa mentalidade mais coletiva?

Já deu para ver muito. A Emily teve pouco tempo de trabalho e se percebe no jogo dela o quanto é importante uma pessoa interessada, estudiosa e envolvida, que pensa nos treinamentos pra estimular comportamentos nas jogadoras pra que possamos ver esta nova postura, completamente diferente das Olimpíadas. É um jogo muito mais gostoso de se ver. E não é porque é mulher no comando, não é isso, nossa seleção era muito cada uma no seu quadrado e se percebe agora um jogo completamente diferente; de ocupação de espaço, conceitos atuais, laterais que atacam, que agridem, a bola rolando na grama, muito mais interessante que um jogo ping-pong. Ela é uma pessoa que estuda muito, corre atrás, é interessada e trabalha muito para poder desenvolver a modalidade de uma maneira diferente. Se a deixarem trabalhar, sem atrapalhar, acredito que possa colher bons frutos dentro da seleção.

Ela tem falado muito em deixar um legado. O que tu acha dessa estratégia nova das convocações regionais, mapeamento e análise das atletas, o moderno no futebol feminino? (saiba mais sobre as convocações de observação)

Acho ótimo. Esse ano pós Olimpíadas costumava ser perdido para o futebol feminino porque você não tem campeonatos para disputar. A ideia de trazer jogadoras pra Granja Comary, passar tempo com elas, fazer uma avaliação, o mapeamento pelo Brasil afora… é super interessante, mais uma bola dentro dela e da comissão. Lamento que esse ano ela não possa pensar realmente no desenvolvimento do jogo em si. Acho que a saída da Copa Algarve foi uma grande perda pra Seleção Brasileira. Se alega que é porque não jogam EUA, França, Alemanha, Inglaterra… e daí? Tem mais três ou quatro países que estão à nossa frente no ranking, mais dois ou três que estão atrás e em evolução, ou seja, é um torneio importantíssimo, desde 1994, e com o Brasil, na hora H, não conseguindo vencer. O Canadá e a Austrália são provas, sempre trazem muitas dificuldades. Seria muito bom pra Emily poder fazer uma avaliação e ter tempo maior pras jogadoras assimilarem o que ela pensa de jogo. O que parece é que não se pensou em datas FIFA pra este ano, o que é uma grande piada, visto que as outras seleções já tem planejados este e o próximo ano. Aqui, a técnica chega ano passado e ela que tem que ver estas coisas. Eu fico pensando: o que o coordenador estava fazendo? Quem sabe quando tivermos uma Aline Pellegrino na CBF talvez as coisas possam mudar.

Você teria estômago pra um cargo na CBF, em alguma Federação?

Sinceramente, não é o que eu almejo para mim. Estou sempre disposta a ajudar, acho que sou uma voz importante dentro da modalidade no nosso país e quando forem solicitadas pessoas que gostem, estejam envolvidas e trabalhando para ela, eu posso ajudar. Claro que também não sei do futuro, mas o que eu gosto mesmo é de falar de futebol, assistir aos jogos, fazer análises, ser comentarista… esta que é a minha grande paixão e o meu foco sempre será nisso.

Quando você começou esta etapa na comunicação, na Record, pelo menos no nome o programa remetia ao padrão da mulher objeto, que era o “Belas na Rede”. E esta relação continua. Falta muito para superarmos essa etapa?

Eu acho que falta, o processo é longo. A mulher vem ganhando espaço dentro do futebol e hoje você tem muita repórter de campo, coisa que você não tinha, bastante apresentadoras, uma comentarista ou outra… Aos poucos vamos quebrando isso a partir da postura da mulher, se mostrando cada vez mais profissional, cada vez querendo mais conquistar espaço pelo seu conhecimento e pelas suas ações. Até pouco tempo atrás ninguém abria a boca para falar da mulher objeto, era assim e acabou. Hoje em dia isso tem mudado bastante. Por exemplo, no caso do Atlético Mineiro (saiba mais), alguns comentaristas se colocaram contra e hoje, com as redes sociais, repercutiu de uma forma gigantesca aquilo que antigamente não se discutia. Hoje temos mulheres que estão na mídia e pelas redes sociais tentam combater isso a todo tempo expondo essas situações. Acho que é um processo, estamos caminhando para que essas coisas fiquem para trás, mas nós vivemos em um país machista, então precisamos ter muita, mas muita paciência. Estamos em evolução.

RedeTV!

RedeTV!

É correto afirmamos que é um momento histórico das mulheres no Brasil, no mundo e no futebol?

Acredito que sim, o conceito de empoderamento da mulher vem crescendo. Ano passado foi um marco muito grande, as mulheres se expuseram e começaram a falar. Isso é um ganho e se percebe que em outros lugares também têm acontecido. Costumo falar das americanas que, apesar de terem uma estrutura completamente diferente, há muito tempo vêm em uma luta pela modalidade no país e hoje há uma briga enorme com a Federação em relação a equiparação salarial. Claro que são momentos completamente diferentes (futebol feminino no Brasil e nos EUA), mas se percebe em outros lugares que a mulher também vem expondo e querendo ocupar o seu lugar.

Você vê nesta nova geração de jogadoras de futebol no Brasil algum impulso por militância ou elas estão mais colhendo os frutos plantados sob dificuldades?

É difícil falar, quem tá ali tem medo de retaliação e não acho que vá militar. O que eu acho uma grande perda. Na seleção americana, mais uma vez, se hoje elas estão brigando por equiparação é porque em 96, em Atlanta, começaram cada vez mais a se unirem e se fortalecerem em grupos para brigar por melhorias. Essa militância deveria passar por elas, são elas que passam pelas situações, mas infelizmente há a questão da retaliação, que atinge não só o futebol feminino, mas várias outras modalidades também. O dia que se entender que o grupo tem mais força do que uma eu acho que essa luta fica mais fácil. E também, como eu sempre falo, não adianta querer lutar de qualquer jeito, você precisa saber lutar, ter argumentações, saber quais armas você vai usar. Se for de qualquer jeito você perde a razão. Seria muito interessante que conseguíssemos que essa militância fosse feita de dentro, mas é compreensível.

Há hoje a nível de América Latina algum país que esteja mais evoluído em comparação com o Brasil?

Existem alguns países que estão tentando se desenvolver. A Colômbia, por exemplo, assumiu o lugar da Argentina, que não tem mais conseguido disputar grandes competições. A Venezuela vem crescendo muito e, se não me engano em 2015, num campeonato sub-17 lotaram um estádio. Ainda em situações difíceis e precárias, mas são países que têm tentado se desenvolver pensando da base para cima. E já tem dado um pouco certo. O Brasil ainda se sobressai muito pela sua qualidade, mas pode ser que fique pra trás se não for organizado, se os planejamentos para o futuro não saírem do papel. Mesmo que aqui as coisas tenham caminhado ultimamente – via normas da FIFA, CBF e Conmebol – com mais oportunidades para as meninas que, sem falar na questão da obrigatoriedade ou não, terão a partir de agora mais espaço. Mas se continuarmos pensando somente em nível adulto, sem a formação, teremos essas lacunas entre gerações.

A esperança é que a modalidade possa fincar raízes profundas e que não seja um espasmo histórico para após entrar em outro limbo. Em suma, está mais otimista, pessimista ou esperando pra ver?

Sempre sou esperançosa, como apaixonada pela modalidade sempre quero que dê certo. Acho que ficamos tão traumatizadas que essas ações não nos permitem tanto otimismo. Muitas vezes demos três passos pra frente e outros cinquenta para trás. Acho que a Aline na Federação Paulista e esta oportunidade a ela me deixam muito otimista. E sobre as outras ações, um pouco esperançosa, mas vamos ver com o passar dos anos como é que isso vai ser.

 

Gostou? Continuem nos acompanhando por esta página, com link para cada uma das nossas mulheres do futebol.

Também não deixem de conhecer e apoiar nosso manifesto pelo futebol feminino clicando na imagem.

DáBolaPraElas_FINAL - Cópia

A Bola que Pariu