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16.07.2018

Postado por Roberta Pereira da Silva

França campeã e porque temos que falar da África

LArs Baron/FIFA

LArs Baron/FIFA

Minhas caras leitoras e leitores, estive em silêncio pleno durante a Copa do Mundo. Minhas companheiras de afeto e de “bola” já sabiam do meu posicionamento sobre a competição e que, por mais contraditório que seja, eu realmente não me interesso pela Copa do Mundo da FIFA. Então apreciei alguns jogos de longe. Como tenho o costume de ver as mesas redondas me informei sobre os acontecimentos, e me interessei em assistir algumas partidas aleatórias transmitidas pelo FOX SPORTS 2, afinal os jogos eram narrados e comentados por mulheres.

Você já deve estar pensando: pra quem não se interessa até que a senhora acompanhou muita coisa. Sim! Minhas caras, são as contradições, assumidas no primeiro parágrafo. E a principal culpada pelo meu interesse na Copa da FIFA foi a seleção francesa e as expressões do racismo presentes em toda a transmissão e cobertura do evento.

Nos primeiros dias da Copa foi identificado entre os times um aspecto que há tempos discutimos quando se trata de racismo no futebol. Entre todas as seleções havia apenas um técnico negro: Aliou Cissé. O técnico de Senegal foi destaque nos periódicos; por sua qualidade, mas também pelo fato de Cissé ter o menor salário entre os técnicos da Copa. No Brasil também são raros os técnicos negros, os dirigentes negros, os jornalistas negros e assim o espetáculo da FIFA expressou uma particularidade vivida cotidianamente por nós da camisa verde e amarela.

Agora falemos das transmissões e cobertura dos jogos. Durante a fase de grupos os comentários sobre as seleções africanas mantiveram os estereótipos de sempre, que possivelmente passaram despercebidos pelos ouvidos menos atentos. Tentem se lembrar de como os jornalistas adjetivavam os times africanos… vou dar-lhes algumas reticências para pensar… Exato! Os comentários afirmavam sobre a festividade dos jogadores, a incapacidade técnica da equipe, atribuíam aos atletas características infantilizadas, ao passo que enalteciam a força física e a rapidez.

Em contrapartida, os times europeus foram considerados frios, estratégicos e um modelo a ser seguido quando se faz referência à parte tática. Simples notar que há uma divisão clara entre racionalidade e irracionalidade. Frantz Fanon, autor martinicano famoso por sua obra Pele Negra, Máscaras Brancas nos dá pistas do quanto esta dicotomia está presente na estruturação do racismo. Quando os iluministas questionaram o que seria o “homem” e suas determinações, em detrimento da centralidade divina, colocaram como modelo e formatação de humanidade o homem branco europeu, desenvolvendo a referida tese que fundamentaria a ideologia difundida em todo o planeta. Desconsideraram inclusive toda formação histórica, política e social produzida pelos povos asiáticos, egípcios e africanos, (re)alocaram a compreensão colocando o “homem negro” numa zona de “não-ser”, passando de um estado humano para situação de coisa e ou animal. Desconfigurado da forma humana, o corpo negro apresenta-se como desprovido de razão, havendo uma dissociação entre razão e emoção, inclusive com valoração distintas. A razão ligada ao humano e a emoção ligada ao “não-ser” negro.

Entendem agora porque chamar de macaco é apenas a ponta bem pequena do iceberg?

Infelizmente, os 5 países do continente Africano foram eliminados na primeira fase. Mas a África se faria presente até o último jogo, sim, a seleção finalista contou com 14 jogadores do continente africano. Os pais de Pogba são de Gana, de Mbappé são de Camarões, Kanté de Mali, Dembelé de Mali e Senegal, Matwidi de Angola e Umtiti de Camarões, para citar os principais.

Franck Fife/AFP

Franck Fife/AFP

E mais uma vez os comentaristas de mesa redonda, que já estão há tanto tempo comentando futebol, não se deram ao trabalho de estudar o tema, de (re)pensar seus preconceitos, de fornecer as espectadoras (es) uma informação mais apurada e correta sobre tal situação. Na maioria dos casos houve uma insistência em afirmar que, na verdade, os jogadores não são africanos e sim franceses, afinal nasceram na França. A todo momento havia uma necessidade de afirmar que aqueles jogadores eram europeus. Ou então não se justificariam os comentários da fase de grupos, não é mesmo?

A frase “esses negros maravilhosos” tornou-se o bordão de um certo narrador global. A palavra “negros” poderia ser substituída por “franceses” ou por “jogadores”, por exemplo. A super afirmação “maravilhosos” revela que talvez os negros não sejam maravilhosos, assim o reforço é mais que necessário. E vejam, como disse acima, não é qualquer negro, e sim negros franceses.

A França foi campeã e a emoção tomou conta do meu coração descrente em relação à Copa. A chuva caindo sobre os jogadores, como se lavasse a alma de todos os povos discriminados, a Copa dos africanos considerados sem capacidade técnica transformada em uma grande lágrima coletiva escorrendo na pele escura, expressando a potência de um povo historicamente subjugado. Mas esta mesma água nos desperta da emoção e nos faz pensar o quanto é urgente a discussão sobre o continente africano, sobre as condições de vida de homens e mulheres tentando (re)construir suas vidas distantes das suas terras, na transformação dos navios negreiros em botes atravessando o Mediterrâneo, de como França colonizou a África e agora mais uma vez se utiliza de suas riquezas e sua mão de obra e de como o Brasil precisa mais do que nunca entender o continente que lhe deu origem.

Peter Powell/EFE

Peter Powell/EFE

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