Futebol Feminino, Futebol Feminino
20.03.2017
Postado por Patrícia Muniz
Na minha jornada porto-alegrense rumo a final da Copa do Brasil 2016, tive a honra de conhecer a professora Silvana Goellner. Referência nos estudos acerca da inserção das mulheres nos esportes e, principalmente, no futebol, temos muito o que aprender com seus trabalhos, artigos e pesquisas.
A Bola que Pariu surgiu com o objetivo de dar voz e visibilidade às mulheres, seja nas arquibancadas ou nos gramados, e o contato com alguém que dedicou tantos anos para entender a nossa inserção no meio esportivo é engrandecedor. Esta entrevista foi ao ar primeiramente em 15 de dezembro de 2016 e, tendo a Silvana um papel tão fundamental no universo esportivo – especialmente no recorte que atinge as mulheres – sua fala não poderia deixar de figurar em nossa serie.
Quais as dificuldades encontradas no desenvolvimento de pesquisas sobre a inserção da mulher nos esportes?
Eu tenho quase 20 anos de pesquisa sobre mulheres e esportes, não só sobre futebol, que é mais recente. O futebol já tinha aparecido, mas não com a potência que ele tem hoje. Quase ninguém falava sobre isso e estudar o tema foi uma escolha política, de visibilidade das mulheres.
No que tive mais dificuldade foi o acesso às fontes. Só tive esse acesso sobre o futebol de mulheres por conta da exposição “Visibilidade para o Futebol Feminino”, que organizamos no Museu do Futebol. Quando me convidaram para fazer a curadoria da exposição, nós tínhamos poucos materiais acessíveis, então, resolvi fazer contato com as atletas. Foi por isso que criei uma conta no Facebook, eu não tinha até então.
A história das mulheres no futebol brasileiro ainda carece muito de fontes. Até hoje não sabemos exatamente se a primeira partida disputada no Brasil foi mesmo entre as Tremembenses e as Cantareiras, que eram moradoras dos respectivos bairros em São Paulo. Todo mundo recita essa história como se ela fosse verdadeira, mas não temos esses indícios, não há nada que prove que essa tenha sido a primeira partida. Além disso, há uma ausência de registros na mídia em geral, em especial no período da proibição da prática do futebol por mulheres (1941-1979). Às vezes, quando entrevistamos algumas pessoas elas dizem: “minha avó jogava nesse período”. Ou seja, o fato de haver a proibição não significa que não tivessem mulheres jogando bola. Talvez se a gente buscasse mais as fontes orais (entrevistas) poderíamos até romper com aquilo que imaginamos ter sido o primeiro jogo oficial.
E quanto a reconhecimento das pesquisas nessa área?
A dificuldade reside em não considerarem o tema importante, mas à despeito disso eu sempre continuei os projetos de pesquisa, junto ao Centro de Memória do Esporte (UFRGS). Eu acho que nunca me importei com essa questão do reconhecimento, eu sempre pesquisei o que tive vontade e isso tem um compromisso político: faz parte do processo de empoderar as mulheres.
Pelo seu contato com as atletas, você acredita que elas têm a consciência política da importância histórica delas ali para o esporte e para as mulheres, entendendo sua existência como resistência?
Muitas delas não têm essa consciência, não sabem o quanto são importantes para o esporte brasileiro. A geração mais nova mal sabe que existia uma proibição, quase não tem conhecimento do quanto as jogadoras da primeira geração sofreram para jogar futebol. Não se dão conta de que, se hoje podem jogar futebol (mesmo com várias dificuldades) é porque no passado muitas atletas abriram espaço. Jogadoras como Sissi, Márcia Tafarel, Michel Jackson, Elaine, Fanta, Marisa, e tantas outras…. Inclusive essas pioneiras, por vezes, não têm consciência do papel que elas tiveram, do quanto elas inspiraram outras mulheres a enfrentar barreiras e buscar espaço em práticas que não eram recomendadas e aceitas para as mulheres. Talvez fosse importante a criação de um espaço coletivo no qual as atletas pudessem atuar em conjunto (e não apenas de modo individual) em prol da modalidade. Espaço esse que poderia agregar também treinadoras, gestoras, enfim, um espaço de empoderamento para quem vive o cotidiano do futebol como profissão.
Nesse trabalho de contato com as atletas, você conseguiu fazer um recorte de classe ou raça?
O futebol no Brasil apresenta alguns marcadores identitários como raça/etnia e classe social. O Brasil é um país demarcado pela desigualdade social e o futebol foi um espaço de empoderamento para mulheres que, muitas vezes, não tinham outras oportunidades, outros espaços de socialização e, por vezes, de renda. As primeiras atletas eram mulheres que iniciaram a jogar na rua, quase nenhuma frequentava clube esportivo. Muitas eram negras, oriundas das classes populares e o futebol era significado como um espaço de expressão e pertencimento. A partir dos anos 1980 esse cenário começa a mudar um pouco com a criação de escolinhas esportivas, já atinge crianças de outros grupos sociais, ou seja, crianças cujas famílias podiam pagar por essa atividade. Nesse sentido, o futebol começa a agregar mais mulheres e meninas apesar de se manter ainda uma referência em outro marcador identitário que está relacionado à questão de gênero e de sexualidade. Como o futebol é representado com um espaço prioritário de homens, quando as mulheres adentram esse espaço surgem algumas representações sobre sua feminilidade e orientação sexual, o que revela um grande preconceito.
Nesses quase 40 anos de proibição da prática esportiva pelas mulheres, existia algum movimento de resistência?
Sim, as mulheres continuaram jogando. Elas não aparecem nos torneios e campeonatos oficiais porque clubes param de investir nesse setor, mas continuaram jogando nas ruas, praias e nas várzeas. Algumas mulheres foram presas e a polícia coagia algumas instituições enviando telegramas avisando que não poderiam realizar jogos. No entanto, elas nunca desistiram. A proibição atingia também outras modalidades como as lutas e o remo. O fato de não termos notícias oficiais de jogos não significa que as mulheres não praticassem futebol e por essa razão é importante ouvi-las.
Durante o período da proibição não havia um movimento organizado contrário à interdição das mulheres em algumas modalidades, mas há episódios na história brasileira de grandes manifestações pela causa. Em 1982, quando o futebol feminino ainda não era regulamentado, a atriz e ativista Ruth Escobar promoveu uma partida de futebol feminino entre seleções do Rio de Janeiro e São Paulo, no estádio Morumbi, como preliminar de um clássico entre São Paulo e Corinthians. Houve a tentativa de proibir a partida, mas foi inglória, ou seja, isso foi um grande ato de resistência. Eu diria que a permanência das mulheres no futebol brasileiro é um ato de pura resistência, até hoje.
O que levou ao fim do decreto de proibição?
O contexto político brasileiro no final dos anos 70 e início dos 80, com a abertura política e a transição da ditadura para a democracia e a insurgência dos movimentos sociais, principalmente o movimento feminista. Um contexto de reivindicações e de busca de espaço pelas mulheres, de busca por igualdade, por direitos, por liberdade de ser o que se quer ser. Não foi fácil. Por isso afirmo que o final da interdição à prática do futebol pelas mulheres não foi uma concessão. Foi uma conquista. Delas.
Você acredita que o crescimento do futebol feminino vai vir vinculado aos times grandes já estabelecidos no Brasil ou na criação de novos clubes?
Eu acho que os grandes clubes não vão investir no futebol feminino. Diante da nova determinação da Conmebol prevista para 2018 na qual os clubes participantes da Libertadores tenham equipes de mulheres pode ajudar. Mas penso que pode ocorrer (como geralmente acontece) apenas dos times emprestarem a camisa (nome) para uma equipe já constituída e fazer contratos sazonais. Isso é muito diferente de construir uma estrutura própria para o desenvolvimento do futebol de mulheres.
Em geral, as equipes de futebol feminino se organizam para o Campeonato Brasileiro e para a Copa do Brasil e, ao fim dessas temporadas, não há garantias para as atletas, elas ficam no limbo, na espera de outras oportunidades. Há poucas garantias de continuidade. Além disso, ainda não há investimento nas categorias de base, o que é um problema para o futuro das mulheres no futebol brasileiro. Há que investir na formação de novas gerações, isso é fundamental, para a continuidade da modalidade e, de certa forma, um respeito à história. Ou seja, a todas as pessoas que lá atrás lutaram, se dedicaram para que o futebol pudesse ser um espaço também das mulheres.
Sobre Silvana Goellner:
Licenciada em Educação Física pela UFSM, mestre em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS, doutora em Educação pela UNICAMP e pós-doutora pela Faculdade do Desporto da Universidade do Porto (Portugal). Professora na graduação e pós-graduação do Curso de Educação Física da UFRGS. Coordena o Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRGS e o GRECCO – Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e História. Integra o coletivo Guerreiras Project. Curadora da exposição Futebol e Mulheres no País da Copa de 2014, realizada em Porto Alegre e co-curadora da exposição Visibilidade para o Futebol Feminino realizada no Museu do Futebol (2015).
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