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, Futebol Feminino

01.03.2017

Postado por Raisa Rocha

Mulheres do Futebol: Sissi, a primeira craque

Sissi conversa e fala de futebol com a mesma desenvoltura que jogava. É uma eterna apaixonada pelo jogo de bola. Fosse hoje, sem exitar a chamariam de “mito”, mas ela ousou jogar futebol num tempo de raro reconhecimento.

Mesmo jogando três Copas do Mundo (1991, 95 e 99) e duas Olimpíadas (96 e 2000), as dificuldades em manter o sonho no país do futebol se transformaram em profundo carinho e respeito pelas coisas dos Estados Unidos, onde há 16 anos ela vive o futebol. Pra dar sorte, abrimos os trabalhos com ela, a primeira 10, Sisleide do Amor.

Zoraida Diaz/Reuters

Zoraida Diaz/Reuters

Pra começar, conta um pouco da tua história nos EUA e como é o seu trabalho com futebol feminino hoje.

Já são 16 anos. Em 2001 fui jogar na liga profissional, joguei por três anos no San Jose CyberRays até a liga acabar, por falta de patrocínio. Voltei para o Brasil por uns meses e recebi novo convite, para jogar numa liga semiprofissional, aonde eu jogo até hoje, no California Storm. Naquela época, mesmo sendo jogadora eu já comecei a desenvolver o trabalho como auxiliar técnica, com garotas de 16 anos. Neste período, fui chamada para ser auxiliar no Solano Community College, com alunos de 17 aos 19 anos (os community ou junior college são uma espécie de curso superior comunitário de dois anos que habilitam os alunos para as Universidades. Além dos estudos, também há a prática de esportes). Já no clube, no Walnut Creek Soccer Club, eu sou a diretora das categorias de base, com meninas dos 9 aos 12 anos, temos no total mais de 1200 crinças juntando a parte competitiva e a recreativa.

Sobre as diferenças culturais à respeito dos esportes na formação.

É bem diferente. Temos os clubes e os programas, como o PDP (Player Development Program) e o ODP (Olympic Development Program). Ou seja, os clubes também são responsáveis, esses programas são um meio para chegar à seleção, é por onde recrutam meninas para as categorias de base.

Sissi Entrevista 1

Sissi jogando pelo California Storm

Alguma menina que você treinou já foi para alguma categoria da seleção?

Atualmente, pelo clube, tenho meninas no PDP e no ODP, já fazendo parte dos times que viajam para competir. Também dei aulas a uma menina que já está na seleção americana sub-15.

Aqui nós não enxergamos projetos, vivemos sob a cobrança dos resultados, em todos os esportes. Como é a relação com a derrota aí nos EUA?

O tratamento é diferente, tem que estar aqui pra ter uma ideia melhor, passar uma temporada pra entender como o futebol feminino é tratado. Há o acesso, aqui é um esporte, sem tabus ou discriminação. O futebol feminino é oferecido nas escolas; tem no high school, no junior college, na universidade e nos clubes. Os clubes proporcionam interação entre os programas dos meninos e das meninas, eles jogam juntos. O nível é outro, por isso que você vê a cada ano jogadoras novas aparecendo no futebol americano. No Brasil, as meninas já chegam com uma idade avançada, aqui os programas de desenvolvimento são oferecidos pra meninas com 10 anos.

Por onde deveria começar a reestruturação da modalidade no Brasil?

Na questão de talento não tem como comparar com as brasileiras. Mas tem que haver investimento em categorias de base e em algo que eu sempre falo, o calendário. Mas um calendário que não acabe no próximo ano, falta planejamento, estrutura. Aqui nós sabemos já no início da temporada o que vai ser feito até o final.

As coisas por aqui têm começado a mudar, mas por conta de uma obrigação. Quem está há mais tempo na modalidade está um pouco cético. Essa obrigação pode realmente virar um incentivo?

É até estranho, as pessoas não deveriam ser forçadas, deveria ser pelo reconhecimento. Porém, eu acho que ainda há preconceito. Aqui também há luta, mas não é para poder jogar, é pela questão do salário, por tudo o que elas já conquistaram até hoje. Se nota que no Brasil mudou algo, mas ainda não o suficiente pra quem está fora querer voltar. Pelo contrário, há meninas saindo para lugares que há anos você nem imaginaria, como a China, a França. Eu fico triste porque a situação no Brasil ainda não está do jeito que eu gostaria.

Você jogou numa época dourada com os times estruturados, apoio da população e da mídia. Mas, por exemplo, você jogou no São Paulo, conquistou tudo e de uma hora pra outra o time foi extinto.

Acho que esta foi a época em que eu mais me senti valorizada, nem pensava em sair do Brasil. Não sei se isso pode se repetir e acho que pode ter haver também com a situação do futebol como um todo, que está em decadência, o futebol masculino também não vai bem. E sempre tem essa questão do retorno. É claro que com o futebol feminino não se vai ganhar fortunas com vendas de jogadoras e é sempre esse argumento. Também tem a questão cultural, do masculino não querer dividir.

Aonde o futebol feminino mais evoluiu?

Na parte física. Não tem como comparar a seleção brasileira com as outras na parte técnica, individual. Era difícil enfrentar as alemãs, as americanas, e hoje está mais nivelado. Porém, também está ficando mais individual e eu gostaria que voltasse a ser mais coletivo. Eram eu, a Kátia, a Pretinha, a Formiga pra decidir o jogo. A Noruega tinha um grupo forte, os EUA também. Já hoje é tudo muito individual, no Brasil a Marta tem que fazer tudo e nos EUA também, tudo é a Alex Morgan, a Carli Lloyd. Ainda quero ver um futebol mais coletivo, como antigamente. Há os casos de seleções que melhoraram, como o Japão, a Inglaterra, a França, o Canadá. Mas a Noruega e a Suécia, por exemplo, não são mais um grupo forte como eram antes.

Emily Lima anunciou renovação, tanto das meninas quanto de estilo de jogo, pra mais coletividade, você tem acompanhado?

Eu tento estar por perto, mantenho o contato com pessoas envolvidas. Primeiro, nunca passou pela cabeça que eu veria uma ex-jogadora, uma mulher na seleção. Já é um primeiro passo. A pressão será grande, haverão críticas, comparação. Mas antes de discutir se é homem ou mulher, o que tem que ser é competente, saber da realidade, ter vivência e querer se aprimorar. Acho que já quebrou-se um tabu e dá pra ver uma postura diferente.

Como você aprendeu a ser treinadora?

Ser jogadora é completamente diferente, é o contrário. Ser uma excelente jogadora não garante que você vai ser uma grande treinadora. Eu fiz cursos, necessários pra tirar a licença. Procuro assistir jogos, acompanhar os treinadores, tirar a licença não é o suficiente pra você ser bom, o futebol muda a cada dia, são muitas decisões pra tomar, você precisa estudar. Eu ainda não me considero uma excelente treinadora, busco me aprimorar sempre.

Como treinadora, como você gosta que seus times joguem?

Eu gosto de bola, de criatividade. Gosto de jogadora que não fica na dependência do treinador pra dizer o que deve ser feito. Eu fico louca quando vejo jogadoras fazendo coisas que você não ensina, que desequilibram! Não gosto de jogo físico, bola aérea. Meu jogo é posse de bola, visão de jogo, o que era uma das minhas qualidades. Gosto de que tenham calma, paciência. Sou fã da criatividade e tem coisas que não se ensinam. É por isso que vou trabalhar agora a parte técnica, de fundamentos, são coisas que aqui ainda faltam e que elas não sabem, não tem aquela ginga pra receber a bola. Eu digo a elas que elas precisam aprender a sambar, brincar com a bola, tratá-la como se fosse a melhor amiga. O jogo nas universidades é rápido e agressivo, mas sem aquilo que o brasileiro já nasce sabendo fazer. Eu não tive treinador quando eu estava lá no interior da Bahia, meu primeiro treinador eu tive com 14 anos e ele não me ensinou a passar, a receber, já foi direto pra parte tática.

Teu gol mais inesquecível foi contra a Nigéria em 99?

Ah, foi! Foi o mais importante porque ganhávamos de 3×0 e deixamos elas empatarem. E aquele foi o primeiro Golden Goal na história dos mundiais femininos. Há um tempo atrás, uma das nigerianas daquela época jogou aqui nos EUA e ela me contou que depois do empate elas juravam que tinham o jogo na mão e que quando veio aquela falta, ninguém acreditou. Ela me disse que eu deixei muita gente chorando no vestiário. A gente também, chorando de alegria.

E como você batia faltas daquele jeito?

Eu era fominha de bola. Quando acabavam os treinos sempre fazíamos competições com as goleiras, eu adorava. Bater escanteio e falta era o que eu mais gostava de fazer, é um momento em que a decisão é sua.

E quando os EUA vão parar de fazer o Brasil chorar? Você está colaborando com isso!

Ah, nós já fizemos elas chorarem um pouquinho também. Antes a diferença era enorme, a cada jogo já se falava “ai meu Deus, lá vêm elas de novo”. Hoje a diferença não é tão grande, mas elas ainda são a pedra em nosso sapato.

Tem um novo feminismo acontecendo, com meninas cada vez mais novas indo à luta por seus direitos. Você acha que é a hora das mulheres no Brasil, no mundo e no futebol?

Eu acho que é sim. Aqui, principalmente, a coisa tá pegando fogo. Se vê uma revolução por igualdade, brigando nas ruas, protestos por todos os lugares, no país inteiro e no Brasil acho que não está na mesma proporção. Eu nunca pensei que fosse vivenciar o que está acontecendo e aqui o povo vai, faz e acontece, no Brasil não é bem assim. Às vezes eu prefiro nem entrar tanto na internet e procurar as notícias, pois me dá uma tristeza muito grande. Sinto muita falta do Brasil, do calor, da comida, mas aqui você tem segurança, não tem medo. Eu agora sou mãe, adotei, sou responsável por uma pessoa e é por essas coisas que não pensei duas vezes quando tive a oportunidade de ficar aqui. Claro que todos os países têm problemas, mas a questão da segurança pesou bastante, mas eu sinto muita falta do brasileiro, a gente tem uma coisa muito especial.

Escutei várias vezes você dizer que não pensa em voltar para o Brasil. Mas se o futebol feminino realmente evoluir e houver uma proposta estruturada, você cogitaria?

Teria que ser uma proposta muito boa, eu tenho minha vida aqui. Não gosto de dizer nunca. Sempre deixei claro que meu sonho seria estar perto e ajudar a seleção de alguma forma, dar de volta tudo o que o futebol feminino me deu, principalmente no Brasil. Não digo que não, quem sabe um dia, se acontecer.

Uma mensagem pras mulheres que amam o futebol e têm sonhos.

Continuem acreditando, continuem batalhando, brigando pelos seus direitos. Foi o que eu fiz, meu sonho sempre foi ser jogadora de futebol, mesmo sabendo que a possibilidade no Brasil era mínima. Mas eu continuei resistindo, fui persistente, nunca deixe alguém dizer que você não pode fazer algo, isso não existe. Se as mulheres se juntarem tudo é possível. Já deu pra perceber que as coisas mudaram um pouquinho e mesmo de longe eu estou torcendo pelas mulheres do Brasil, pelas mulheres.

Lutz Bongarts/Getty Images

Lutz Bongarts/Getty Images

Obrigada Sissi, você foi uma das guerreiras que abriram os caminhos pras mulheres brasileiras no futebol. E o convite pra aquela cervejinha quando estiver por aqui, está em pé!

Conheçam nosso manifesto pelo Futebol Feminino clicando abaixo.

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