21.05.2017
Postado por Colaboradoras
Lançamento da 18ª Copa Negritude – São Paulo
Em plena sexta-feira chuvosa do dia 19/05/2017, encontramos um auditório lotado de homens, em sua maioria meia idade, com camisetas, bonés, agasalhos e uma identificação marcante: o seu time de futebol de várzea. Nesta noite de dezenove, foi lançada a 18ª edição da Copa Negritude, organizada pelo time de mesmo nome – Negritude Futebol Clube. A copa será sediada às margens da “Arena Corinthians”, no CDC Alvorada, sede atual do time organizador, localizado na COHAB I Zona Leste de São Paulo. Os times são, em sua esmagadora totalidade, das periferias da cidade de São Paulo e região metropolitana. A Copa irá ocorrer a partir de agosto de 2017.
A Copa é dividida em quatro categorias: 50tão, 40tão, Esporte e Categoria de Base, ao todo serão quase 80 times disputando. O lançamento teve dois objetivos principais; o primeiro, foi o sorteio das chaves e o segundo, a apresentação e discussão sobre o regulamento. O ponto mais enfatizado da noite foi quanto à violência exercida por parte da comissão técnica e dos jogadores em relação à arbitragem e às equipes adversárias.
Uma novidade do campeonato será a adoção do cartão branco para os jogadores que proporcionarem o “fair-play”, a ação será registrada na súmula e possivelmente os jogadores serão premiados.
Outro exemplo de organização para deixar a Conmebol, Federações e a própria CBF no chinelo, é que no momento da inscrição do time, por muitas vezes chamado de “entidades”, o responsável recebia uma pasta com regulamento da competição e uma planilha com os nomes dos times, técnicos e jogadores impedidos de participar do campeonato devido a punições na Copa Negritude passada, ou em outros campeonatos de Várzea nos anos 2016-2017. A planilha contava com o nome do jogador, técnico, equipe, motivo da punição, campeonato em que ocorreu a punição e duração da punição. No início da partida todos os participantes, sem exceção, deverão apresentar documento com foto para identificação e anotação da súmula, impedindo que jogadores punidos entrem em campo e acarretem na eliminação do time na competição.
Ou seja, não há desculpa para desconhecimento, tampouco para punições tardias proferidas pelos homens de toga, levando quase à extinção do time punido em detrimento do que possui total circulação pelos corredores julgadores. A cada ano são feitas iniciativas para a redução da violência nos campos de várzea e, segundo os organizadores, vem dando resultados, já que vem reduzindo-se significativamente o número de equipes e jogadores punidos.
O lançamento, como dito anteriormente, ocorreu na Câmara Municipal de São Paulo, local público doravante nominado Casa do Povo, contudo, o povo passa cada vez mais longe até de sua calçada, sim, há gradis e cerca de ferro que separam a entrada da calçada, principalmente após assumir a prefeitura um suposto “trabalhador”. Digo isto pois, é no mínimo simbólico, um campeonato de várzea ser lançado em um espaço que barra a presença da população periférica.
A várzea no Brasil tem origem no futebol marginalizado, no futebol do barro, no futebol proibido de estar nos clubes de elite das cidades brasileiras e ele foi formado por mulheres consideradas sujas, sem padrão para estarem nas arquibancadas assistindo aos clubes aristocráticos. Formada por negros, humilhados no futebol oficial, que podiam no máximo frequentar os campos, mas não a sede e os bailes dos clubes, e que assim formavam ligas como os Canelas Pretas, no Rio Grande do Sul. A várzea foi formada mesmo longe da várzea dos rios, nos morros do Rio de Janeiro, que todos os anos até os dias atuais realiza a Copa das Favelas, relatada tão espetacularmente no filme Campo de Jogo. A várzea foi fundada por imigrantes empobrecidos, pelos anarquistas, ou seja, fundada por nós.
E vejam, a conotação pejorativa que confunde várzea com bagunça, desorganização e coisa ruim também data do início do futebol no Brasil, considerado de segunda categoria ou como pequeno futebol. Em São Paulo, era realizado principalmente nas várzeas do Rio Tietê. Após a abolição da escravatura, os negros recém-libertos, sem qualquer tipo de reparação e proibidos inclusive pela lei de terras vigentes de adquirir um pedaço de chão, passaram a residir próximo às fazendas onde foram escravizados, exatamente nas várzeas dos rios. Neste período, ancorados na premissa higienista e eugênica, o Estado e a burguesia local consideravam estas áreas como locais de “vagabundagem, criminalidade e sujeira”, sendo necessárias ações de cunho coercitivo (policial) e de saúde, evitando assim a contaminação das áreas nobres da cidade. Portanto, a conotação ruim que se dá a várzea tem origens racistas e discriminatórias.
Os praticantes do futebol de várzea assumiram a nomenclatura e se esforçam para manter vivo o futebol “amador”. Com a expulsão desta população das várzeas e o processo de segregação socioespacial, a população trabalhadora foi deslocada para os extremos da cidade, levando consigo a paixão e organização do futebol amador. Os terrenos baldios foram ocupados e transformados nos terrões.
Nos dias de jogos podemos vivenciar fogos de artifício, instrumentos musicais, canções apaixonadas, sinalizadores e todo o espetáculo cada vez mais silenciado nos jogos do futebol profissional. Na várzea temos a confraternização e o churrasco pós-jogo, bem diferente do cappuccino das novas “arenas”. O espetáculo é público e gratuito e vê melhor quem chega mais cedo. Obviamente, os campos de terra não possuem estrutura, arquibancadas, às vezes nem banheiro feminino se encontra. Mas tem a vida, a possibilidade de suspensão do cotidiano, tem o lazer desprendido sem amarras e custos. Tem a FESTA.
Devido à história do Negritude F.C., os materiais de divulgação trazem um homem de black power (escudo do time) e a figura de Nelson Mandela. Não por acaso, a maioria dos participantes na plateia do lançamento é negra, homens moradores da periferia que fazem o futebol respirar. A organização de um evento tão grandioso demonstra a capacidade de homens e mulheres se organizarem, mesmo sendo submetidos às mais perversas mazelas que o cotidiano apresenta. Mostra que a periferia pode e deve se organizar tanto para o lazer como para a queda daquele que não tem sua imagem refletida no espelho. A história já nos deu muitos exemplos que somente o oprimido dará fim a sua opressão.
Pois bem, para nós que bradamos quase sem pausa que somos contra o futebol moderno, deveríamos dar mais valor e visibilidade a espaços como estes e a um futebol produzido e organizado pelos que amam o futebol e não aos que amam o dinheiro. Se essas histórias, os festivais e a organização popular não forem contados, ficarão apenas nos olhos e nos corações dos sobreviventes e depois, quando não sobrar ninguém, as novas gerações jamais vão saber que o verdadeiro futebol existiu. Portanto, camaradas, parafraseando Xico Sá, “Há cronistas que só miram o futebol profissa e são bons, há outros que vão além e são melhores, há os que têm olhos em vários movimentos e são muito bons, mas há os que se destinam – sobretudo aos domingos de guarda – ao mundo da várzea, e estes são os imprescindíveis.”.
Indicações para saber mais sobre o tema:
Livros:
Contos da Várzea e outros Blues – Marcelo Mendez editora Córrego;
Futebol de várzea em São Paulo – A Associação Atlética Anhanguera (1928-1940) – Diana Mendes Machado da Silva – Editora Alameda
Filmes:
Campo de Jogo – Direção: Erik Rocha – 2015
A Várzea Rolada na Beira do Coração – Direção: Fabio Akins Kintê – 2010
Site oficial:
http://www.negritudefutebolclube.org.br/home
Por Roberta Pereira