12.12.2017
Postado por Colaboradoras
Você já deve ter ouvido sobre o movimento “Diretas Já”. E se você gosta de futebol, provavelmente já viu em algum lugar o Flamengo e seu mascote Urubu. E o que essas coisas têm em comum? A resposta é um dos mais brilhantes brasileiros que nos deixou precocemente, mestre do desenho e da militância pela justiça social. Seu nome é Henfil.
Ser brasileiro descendente de família do norte de Minas Gerais, região árida, um aluno relapso nas atividades escolares e hemofílico como os irmãos Herbert de Souza (Betinho) e Francisco Mário (Chico Mário) eram algumas das características que compunham a personalidade singular de Henrique de Souza Filho, o Henfil. Na escolha da carreira, encontrou-se dividido entre a Sociologia e o cartum, tendo seguido o caminho deste último, embora nunca tenha abandonado os questionamentos e as inquietações que o estudo da Sociologia lhe deixara como legado. De acordo com Márcio Malta, “a produção de Henfil, em sua quase totalidade, foi pautada em termos críticos. Adotou a caneta como arma para denunciar e questionar tradições e comportamentos sociais. Tocava em pontos chave, desenvolvendo um inconformismo contagiante. Valores que até então eram vistos como naturais, eram espezinhados na mão do cartunista”.
Discípulo do irmão Betinho, sociólogo e ativista, nove anos mais velho, Henrique converteu-se em um ávido leitor. Cresceu em meio às notícias da Revolução Cubana de 1959, que lhe serviu de inspiração, e frequentando os encontros da Juventude Estudantil Católica (JEC). Publicou seu primeiro cartum aos 17 anos em um periódico da própria JEC. Betinho, assim como muitos intelectuais da época, também sofreu com a repressão da ditadura militar e foi exilado no Uruguai, tendo o cartunista se posicionado como ferrenho defensor da luta pela anistia e pela redemocratização brasileira.
Frequentando o ambiente universitário antes mesmo de ingressar na faculdade de Sociologia, era constantemente convidado pelos dirigentes estudantis para fazer ilustrações em cartazes e panfletos dos diretórios acadêmicos. Apreciador dos traços de Mauro Borja Lopes (Borjalo) e Ziraldo Alves Pinto, Henfil foi aperfeiçoando seu traço na medida que o usava como instrumento para denunciar as contradições sociais que tanto o incomodavam.
Tido como “aluno problema” durante toda sua infância e adolescência, devido a sua falta de atenção, falta de comprometimento com as aulas e às péssimas notas que recebia, Henfil ingressou no curso de Sociologia na UFMG no conturbado ano de 1964, passando em oitavo lugar dentre os setenta candidatos. Contudo, desistiu da universidade para se dedicar ao desenho. E não poderíamos ser mais gratos a essa decisão, tendo em vista a influência que seus cartuns têm até os dias atuais, sendo um verdadeiro registro de uma época.
E como Henrique de Souza Filho se consagrou como Henfil? Foi Roberto Drummond, escritor e jornalista que reergueu a Revista Alterosa (cujas atividades foram paralisadas em 1964), que viu no atrapalhado revisor Henrique, o “novo Borjalo” que tanto procurava. Indicou os cartunistas franceses Bosc e Sempé para que o recém-batizado Henfil aprimorasse seus desenhos, inspirando-se na leveza do traço dos franceses que posteriormente tornou-se sua marca registrada. Esse traço característico foi definido posteriormente por seu amigo e também cartunista Jaguar como “caligráfico”, o que significa que Henfil “desenhava assim como escrevia”.
Após o fechamento da Revista Alterosa em 1964, Henfil trabalhou no Diário de Minas em 1965, em 1967, mesmo ano em que se muda para o Rio de Janeiro, colaborou com o Jornal dos Sports, onde foram consagrados seus personagens. Inspirados na posição social dos torcedores, caíram nas graças das torcida, o que contribuiu para o crescimento da popularidade do cartunista. Confira.
Urubu (Flamengo)
Como forma de aberta discriminação aos torcedores do Flamengo, em grande maioria afrodescendentes das camadas populares, as torcidas rivais o apelidaram de “urubu”. A provocação atingiu seu auge durante uma partida na década de 60: torcedores do Botafogo soltaram um urubu em pleno Maracanã lotado. Era mais que futebol: era preconceito contra os pobres (a ideia de o animal “revirar o lixo”), racismo e discriminação. Assim, no dia seguinte, Henfil desenhou no Jornal dos Sports um urubu com a camisa do Flamengo, como forma bem-humorada de escancarar a crítica. Para ele, a maior reivindicação era a ironia – e o Flamengo adotou o urubu como identidade, convivendo pacificamente com o marinheiro Popeye, mascote desenhado pelo argentino Lorenzo Molas na década de 1940. Henfil era apaixonado e torcedor fanático do rubro negro.
Bacalhau (Vasco)
As torcidas rivais provocavam os vascaínos chamando-o de Bacalhau. Henfil se aproveitou da provocação e, ao contrário de Molas que desenhou o Vasco como um Almirante, passou denominar o mascote apenas como “Bacalhau”. Uma das características marcantes de Henfil foi transformar provocações de rivais em carismáticos mascotes adorados pela torcida, como no caso do Vasco.
Pó de Arroz (Fluminense)
O Pó de Arroz, assim como o Cri-Cri do Botafogo, era representado por Henfil como um membro da elite privilegiada do país, dada à classe social que grande parte da torcida fluminense pertencia na época.
E por que Pó de Arroz?
A data é 13 de maio de 1914, a partida é contra o America. Carlos Alberto e outros jogadores do America se transferiram para o Fluminense. Órfã e ressentida, a torcida faz provocações ao ex-jogador: “Pó de Arroz!” – bradam os torcedores. Isso porque, Carlos Alberto tinha o hábito de usar pó de arroz após se barbear, e, quando suava durante a partida, era notório o pó de arroz que escorria de seu rosto. O Fluminense, portanto, adota o Pó de Arroz como forma de defender o jogador.
Cri-Cri (Botafogo)
Assim como o Fluminense, o Botafogo também é representado segundo a classe social a qual predomina sua torcida, a elite branca. Nas palavras de Zico, “o Botafogo é o Cri-Cri, né? Botafogo era o clube que mais me fez ter raiva como torcedor.”
Gato Pingado (America)
O America também teve seu mascote, o diabo, desenhado por Molas, na década de 40. Contudo, satirizando a quantidade reduzida de torcedores do America, Henfil adotou o Gato Pingado para simbolizar o time.
Vale lembrar que outros personagens também foram criados por Henfil, como Os Fradinhos Baixinho e Cumprido, o trio da Caatinga composto por Graúna, Zeferino e Bode Orellana, Ubaldo e Caboclo Mamadô (personagem incumbido de enterrar as celebridades a favor do regime militar), a feminista Zilda-Lib, o operário Orelhão, o Preto-que-ri, entre outros.
Durante sua breve vida (1944-1988) a sua produção esteve intimamente relacionada à ditadura militar brasileira. Faleceu em 1988, vítima do vírus HIV contraído em uma das transfusões de sangue as quais se submetia para o tratamento da hemofilia. Como bem descreve Márcio Malta, “o escritor Charles Baudelaire classificou os desenhos de humor em dois tipos: os que desaparecem com o decorrer do tempo e os duráveis, eternos”.
Morro, mas meu desenho fica.
Henfil
Bibliografia
MALTA, Márcio José Melo. Henfil: uma educação por linhas tortas. Revista Ensaios, v. 1, n. 1, p. p. 58-65, 2008.
MORAES, Dênis de. O rebelde do traço: (a vida de Henfil). 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
PLACAR. São Paulo: ed. Out, n 1097, 1994.
http://www.flamengo.com.br/site/conteudo/detalhe/15/mascote
http://www.flamengo.com.br/site/noticia/detalhe/424
http://www.flunomeno.com/2017/02/porque-o-fluminense-e-chamado-de-po-de.html
http://culturatricolor.blogspot.com.br/2012/08/o-fluminense-no-traco-de-henfil.html