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07.05.2018

Postado por Mariana Moretti

Zidane e os 20 anos daquela final

Em 1998, eu contava com 9 anos de existência e poucas certezas sobre a vida. Eu sabia chutar bola, tinha paixão por um garotinho que também chutava bola, e seria suspensa, anos mais tarde, por chutar bola na janela da escola. Menos idade, mais certezas do que tenho hoje, é verdade. Uma das certezas que eu ingenuamente possuía nessa época, era de que o Brasil sairia vencedor daquela final com a França, 20 anos atrás. Vejo muita gente lamentando o 7×1, mas isso não foi nada para quem vivenciou na pele como é estar com a mão na taça e deixá-la esmaecer.

A final começa longe do país da Copa, inicia com aquela nobre figurinha de aparelho metálico verde-e-amarelo, eu pequena. O cenário era o carro de minha mãe, um honesto Monza cor verde-água, anos 80, amplo porta-malas, 2 portas e nenhuma saída para uma criança que queria acompanhar a grande final pela televisão. “Vamos viajar agora que a estrada fica mais vazia”. E realmente, não havia uma alma penada canarinha naquele percurso: entre minha casa e a casa de minha avó, em outra cidade, só existia a pessoa que vos fala, a mãe de quem vos fala e uma sensação de quase morte por não estar em casa assistindo o jogo pela televisão, que é como todo mundo fazia e faz até hoje.

Aí de mim se dissesse que não iria. Provavelmente não teria nem visto o penta em 2002. Surra de mãe é igual derrota em Copa do Mundo: dói e marca para sempre. Sabiamente, acompanhei minha mãe sem dar um pio, com uma dor imensa no coração: não ver o Ronaldo fazer gol. Não ver o Bebeto comemorar. Não ver todos os jogadores da França que eu só conhecia pelas figurinhas do álbum. Que desgraça de futuro. Eu, jogada no banco traseiro do Monza, fadada a imaginar 90 minutos de jogo – e nenhum cena para ilustrar. Mal sabia que isso não iria acontecer. Não naquele ano.

Minha mãe era adepta do ritual Methiolate: fazia a filha sofrer, mas depois assoprava, lógico. Ligou o rádio, o equipamento mais tecnológico da época a ser usado dentro de um carro, para que sua ansiosa filha pudesse acompanhar a peleja histórica. O voraz narrador de voz incansável – um ser acima do humano. As vozes dos narradores de rádio tinham uma emoção sincera que nunca mais ouvi ao acompanhar o futebol pela televisão. Uma pena que, na época, eu não sabia admirar as coisas “antiquadas” com a proporção que elas mereciam.

A jornada, segundo meus cálculos juvenis, começava com minha mãe saindo da garagem autorizada pelo apito do juiz, durando 45 minutos para ir até lá – o primeiro tempo. Chegando na minha avó, cerca de 15 minutos para que ela descesse as escadas – eu cuidadosamente havia considerado complexas contas de velocidade média, delta ésse sobre delta tê, o fato de ela carregar uma mala, e talvez de haver uma barata que ela tivesse que desviar na escada, isso seria o intervalo do jogo, certinho, sem pôr nem tirar. Já na volta, minha mãe conseguiria um atalho, furaria dois pedágios, e chegaria ao nosso prédio aos 39 minutos do segundo tempo, onde eu seria ejetada do banco do carro diretamente para a portaria de nosso prédio, onde Seu Severino estaria me esperando para assistir os minutos finais de nossa vitória sobre os comedores de croissaint na televisão de 5 polegadas preta e branca da portaria.

Ivo Gonzalez/O Globo

Ivo Gonzalez/O Globo

O mais triste não foi a falta de imagens que tenho desse jogo, nem o fato do Monza não possuir o assento ejetor de filhas ansiosas, nem o fato daquela ser uma das últimas Copas que veria minha avó. A Copa de 98, entre outras coisas que me aconteceram naquele ano, me provaram que a vida pode ter um gosto muito amargo. Todo esse gosto que sentia na boca, enquanto ouvia um narrador desapontado comunicar os gols da França, foi se transformando em um só nome: Zidane. Barthez, Petit, Zidane. Como eu os odiava. Odiava a França. Odiava o rádio. Por que Ronaldo não jogou tudo que estava jogando naquele Mundial? Onde estava a nossa seleção das 13 letras de Zagallo?

Apesar de querer aniquilá-lo, eu sabia que não ia levar a nada esse ódio todo. Os meses foram passando, a poeira abaixando, a música do Skank desaparecendo das rádios e as tintas das ruas desgastando com as chuvas. A vida seguia seu curso, com ou sem taça, o brasileiro voltava aos seus afazeres, voltava a entupir as estradas que estavam vazias naquele fatídico dia, guardado em minha memória. O futebol sempre nos ensina algo de muito valor.

Se houve conspiração, eu não sei. Eu era pequena demais para compreender o significado da palavra. Depois de algum tempo, passado o desastre pueril, eu me dedicava a sádica tarefa de acompanhar Zidane. Ver seus jogos, admirar seus lances, apreciar seus gols. Mas foi só depois de ler Eduardo Galeano que me dei conta de quem era Zidane. Zidane era argelino, o primeiro e único argelino a ter seu nome escrito no Arco do Triunfo: “Zidane presidente”. Que loucura que é o futebol. Que loucura que é o europeu e a história que lhe compete. Foi aí que percebi que havia algo de muito mágico em torno do Mestre Zizou. Algo que a cabeçada de 2006 não é capaz de apagar, nem mesmo ser digna de nota de rodapé na história desse cara.

Você vai achar estranho que esse texto não tem imagens dele, o algoz. Pois é, não tem. Como eu não vi o jogo, essa era a imagem que eu tinha: um grande e amargo vazio. Minha mente era capaz de ilustrar bem as camisas verde-e amarela, a derrota, os jogadores caídos em campo, mas nunca Zidane. E assim foi melhor. Uma lembrança amarga que só poderia ser como machucado de criança: dói, às vezes fica uma cicatriz, mas sara. E só iria sarar na Copa seguinte. Até 2002, mais uma longa estrada.

 

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