25.02.2018
Postado por Mariana Moretti
Eu percorria a lenta estrada com os olhos amarrados à janela do carro, já úmida de minha respiração tão próxima. Ainda assim, eu estava distante: queria entrar no coração da paisagem para não deixá-la nunca mais. As esguias e contorcidas árvores denunciavam a condição de um cenário digno de uma tela surrealista, desde que pincelado com tinta seca. Tinta marrom. Tinta bege arenosa. Tinta vermelha de sangue quente, sangue nordestino e muito brasileiro. Quadro de natureza viva eram os imponentes juazeiros e as flores de mandacaru durante as noites solitárias da caatinga, entre as andanças de preás e suçuaranas. Esses resquícios de luta e resistência! E quem foi que falou em seca? Nessa estrada tupiniquim, erguida no coração do Nordeste, havia fartura de inspiração dos pés à cabeça.
Tem gente que escreve a história usando as mãos. E tem gente que escreve história com os pés.
Enquanto mirava a paisagem que se repetia na janela do carro, eu achava beleza nas trivialidades da vida. Lembrei-me. O estado era o Alagoas e a data era 27 de outubro de 1892, isso quando ele nascia pra entrar pra história com a nobre missão de levar a caatinga ao conhecimento do mundo. Eu também, nascido aos vinte e sete dias, mas do mês de janeiro, anos mais tarde, mais precisamente quando começaram a abrir estradas a torto e direito pelo país, como essa que percorro nesse exato momento. Que beleza era a coincidência, essa tempestade pós-estiagem, esse fertilizante quase divino da realidade. Os mesmos 27 dias, o mesmo Alagoas, ele com as mãos, eu com os pés. Não muito longe dali, daquela estrada de linhas tortas, começavam as andanças da mulher que ganharia o mundo com seus pés – e não como retirante. Como personagem de um cordel, sua história é também poesia.
Que rico é o solo de meu Alagoas.
Chego a Maceió depois de mais algum tempo de estrada, ou Maceió que chega até mim depois de percorrer toda a transição de minha paisagem surrealista. Antes de entrar no Trapichão, uma parada quase contemplativa para anteceder um momento tão alegre quanto nostálgico – ver o Tricolor Paulista em campo. A arquibancada era o destino final dessa empreitada e toda a viagem até então era fruto de uma embriaguez que a própria caatinga me proporcionava. O jogo era naquela noite e não há Paris nem lugar algum no mundo como a nossa casa. O melhor lugar do mundo é aqui e agora, já disse alguém em algum lugar. Antes do jogo, o ritual:
– Vê um danone, faz favor!
Nota da autora: Há três personagens reais ocultos nessa breve crônica fictícia – e um tanto descabida. Se o leitor e leitora também acham graça nas trivialidades da vida, o desafio é desvendar as identidades aqui presentes. Caso não sejam admiradores de tal gracejo infame como o proposto, me empenho e trago mais realidade ao próximo escrito.
Foto de Caio Vilela