15.04.2018
Postado por Colaboradoras
Um dos meus clichês preferidos enquanto torcedora mais ou menos inserida no universo das torcidas progressistas (que felizmente estão surgindo e crescendo a cada dia não só no Brasil, mas no mundo) é o que diz que o futebol não é só um jogo, nem só um esporte.
Acreditar que o futebol – o campo e as arquibancadas – são um reflexo da nossa sociedade, com tudo o que ela tem de bom e de ruim, ajuda a perceber, ainda que no alto do meu conforto de branca hétero de classe média, que – como a sociedade – o futebol ainda não é um espaço de todos. Por sorte, assim como a sociedade, aos poucos o cenário está mudando e iniciativas inclusivas brotam por todos os lados. Essa foi a melhor sensação que me proporcionou a segunda edição da Champions Ligay, que aconteceu em Porto Alegre. Assim como no início da década passada a capital gaúcha recebeu o Fórum Social Mundial, sob o lema de “um outro mundo é possível”, a Champions me deu a esperança de que um outro futebol é possível.
As pessoas que estiveram no complexo Soccer City, na zona norte de Porto Alegre, eram comuns: mães e pais de família, muitas crianças, pessoas com camiseta não só das 12 equipes participantes, mas também dos times da cidade. As mesmas pessoas que encontramos nos nossos trabalhos, na faculdade, no shopping e – veja só! – no estádio de futebol. Mas o que estava para acontecer ali era uma festa pela diversidade e inclusão. Se nos estádios “bicha” é a palavra usada para xingar o goleiro adversário durante o tiro de meta, ali era um tratamento carinhoso entre colegas de equipe.
A jornada de sábado começou com a apresentação das 12 equipes que disputariam a Champions. Oriundas de 6 estados do país, cada uma levou suas cores (e quantas cores!), bandeiras, balões, torcidas e uma coreografia. Até os funcionários do Soccer City, local com quadras de aluguel, gostaram da animação fora do habitual:
Os jogadores, em sua maioria, são homens que, por sua orientação sexual, sentiram-se afastados do universo do futebol, seja nas peladas entre amigos ou nas arquibancadas. Assim, acabaram se encontrando e formando as próprias equipes. É o que conta David Reis, lateral direito da equipe gaúcha PampaCats e comentarista do evento: “Meu time me ajuda a viver o futebol. Aqui no evento é a primeira vez que eu participo do futebol como torcedor. Um evento como esse muda nossa relação com o próprio futebol. Muitas vezes, demonizamos o esporte quando, na verdade, também podemos jogar e torcer. É muito bonito e importante que isso aconteça”, descreveu.
Ainda que a homofobia seja abjeta e provoque mortes, aquele espaço de comunhão permitia o retorno ao significado original da palavra “gay”: alegre. Durante todo o tempo uma DJ animou os presentes com hits clássicos das festas alternativas. As quadras receberam nomes de divas do pop/funk brasileiro.
Mesmo no ambiente mais competitivo dos jogos, prevaleceu o fair play, a amizade e o apoio. Os gritos comuns em qualquer partida, “aperta ele”, “vai”, “olha o ladrão” se misturavam com comentários MA RA VI LHO SOS como “olha a mala do goleiro” (pessoas habituadas às gírias da cena gay vão entender), “o lateral eu já peguei” e “bicha, seu time tá jogando e você aqui assistindo jogos do Magia???”. Como pontuei acima, sou hétero e mulher. Falar sobre homossexuais gays é algo que eu não faço com propriedade, pois não é meu lugar de fala, porém, a sensação que eu tive é que a afetação dos participantes era justamente uma celebração à liberdade de ser e torcer como quiser, liberdade essa praticamente impossível nos estádios brasileiros.
E tá achando que bicha é bagunça, meu amor? Nã-nã-não! O “Brasileirão dos Viados” (como alguém falou e eu achei LINDO) teve apoio institucional do governo estadual e municipal. “A organização do evento nos procurou lá por fevereiro e nós abraçamos a causa. Fomos atrás de parcerias com a Secretaria de Saúde, para distribuir camisinhas, fomos atrás do PPCI do local, que estava há mais de um ano fechado, buscamos a segurança do evento junto com a Secretaria de Segurança… Enfim, trabalhamos para estar juntos aqui e fazer o melhor evento possível. Mais que nada, nossa inspiração é a inclusão, seja pela forma que for”, conta Douglas D’Ávila, coordenador de Diversidade Sexual do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania do Governo do Estado do Rio Grande do Sul.
Dizem que no dia 14 de abril o outono finalmente começou a aparecer em Porto Alegre. O dia estava cinza, cinza como muitas vezes parece o futuro de um certo país onde o conservadorismo avança de maneira perigosa. A presença de pessoas de todas as idades celebrando a diferença que cada um tem, mas nem por isso deve ser motivo de repúdio, foi como esse sol que sempre esteve ali, atrás das nuvens, e só precisa que o vento sopre para aparecer. A importância desse tipo de manifestação foi o que pontuou a fala de Lucas Maróstica, referente da causa LGBT no sul do país e jogador dos Pampacats:
Existe um clichê que diz que não é só um esporte: é união, respeito, amizade, competitividade sadia, solidariedade, superação, amor… A Champions celebrou todas essas características que sempre estiveram de mãos dadas com o futebol, mas que tantas vezes, esquecemos. O Porto Alegre justificou seu nome. Que essa seja a segunda de muitas edições, cada vez maiores e mais inclusivas, e que cada jogador ali continue matando o preconceito no peito e chutando para o gol.
Leia também: Pra (literalmente) chutar o preconceito – II Champions Ligay
Por Soraya Bertoncello
Fotos de Soraya Bertoncello
Foto de capa dos Bharbixas F.C.